domingo, 14 de outubro de 2012

O DISCURSO COMPETENTE - Marilena Chauí

O DISCURSO COMPETENTE

Marilena Chauí


Como sabemos, a ideologia não é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na qual as idéias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência(que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou a dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos"ensinam" a conhecer e a agir. 

A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas,anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante.Universalizando o particular pelo apagamento das diferenças e contradições, a ideologia ganha coerência e força porque é um discurso lacunar que não pode ser preenchido. Em outras palavras, a coerência ideológica não é obtida malgrado as lacunas, mas, pelo contrário, graças a elas. Porque jamais poderá dizer tudo até o fim, a ideologia é aquele discurso no qual os termos ausentes garantem a suposta veracidade daquilo que está explicitamente afirmado.


Sabemos também que, por definição, na ideologia as idéias estão sempre "fora do lugar", uma vez que são tomadas como determinantes do processo histórico quando, na verdade, são determinadas por ele.Evidentemente, isto não significa que as idéias sejam um "reflexo" invertido do real, mas indica apenas que elas não precedem o real, pois o exprimem, seja na forma imediata do aparecer, seja na forma mediata da reflexão. Por outro lado, ao afirmar que na ideologia as idéias estão "fora do lugar",essa afirmação nada tem a ver com a geografia (como nos poderia levar a crer, por exemplo, a infindável repetição de que no Brasil se pensa por importação de idéias estrangeiras). "Fora do lugar"remete à circunscrição do espaço social e político de uma sociedade determinada. Em suma: as idéias deveriam estar nos sujeitos sociais e em suas relações, mas, na ideologia, os sujeitos sociais e suas relações é que parecem estar nas idéias.


Também sabemos que a ideologia não tem história. Isto não significa que a ideologia seja um corpus imóvel e idêntico de representações e normas (pois a experiência nos mostra, a cada passo, as mudanças ideológicas). Dizer que a ideologia não tem história significa apenas dizer, em primeiro lugar, que as transformações ocorridas em um discurso ideológico não dependem de uma força que lhe seria imanente e que o faria transformar-se e, sim, que tais transformações decorrem de uma outra história que, por meio da ideologia, a classe dominante procura escamotear; em segundo lugar, e mais profundamente, significa que a tarefa precisa da ideologia está em produzir uma certa imagem do tempo como progresso e desenvolvimento de maneira a exorcizar o risco de enfrentar efetivamente a história. Afirmar que a ideologia não tem história é, portanto, afirmar que, além de "fora do lugar",nela as idéias também estão "fora do tempo". Embora paradoxal, essa constatação é inevitável O paradoxo da expressão "fora do tempo" decorre do fato de que, estando a ideologia a serviço da dominação de uma classe social historicamente determinada, necessariamente a atualidade da dominação exercida exigiria que as idéias estivessem encravadas em seu próprio tempo. Para que tal paradoxo se desfaça é preciso que compreendamos a diferença entre saber e ideologia.


O saber é um trabalho. Por ser um trabalho, é uma negação reflexionante, isto é, uma negação que, por sua própria força interna, transforma algo que lhe é externo, resistente e opaco. O saber é o trabalho para elevar à dimensão do conceito uma situação de não-saber, isto é, a experiência imediata cuja obscuridade pede o trabalho da clarificação. A obscuridade de uma experiência nada mais é senão seu caráter necessariamente indeterminado e o saber nada mais é senão o trabalho para determinar essa indeterminação, isto é, para torná-la inteligível. Só há saber quando a reflexão aceita o risco da indeterminação que a faz nascer, quando aceita o risco de não contar com garantias prévias e exteriores à própria experiência e à própria reflexão que a trabalha. Ora, para que a ideologia seja eficaz é preciso que realize um movimento que lhe é peculiar, qual seja, recusar o não-saber que habita a experiência, ter a habilidade para assegurar uma posição graças à qual possa neutralizar a história,abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda a tentativa de interrogação. Assim, graças a certos artifícios que lhe são peculiares (como, por exemplo, elevar todas as esferas da vida social e política à condição de "essências"), a ideologia torna-se dominante e adquire feição própria sempre que consiga conjurar ou exorcizar o perigo da indeterminação social e política, indeterminação que faz com que a interrogação sobre o presente (o que pensar? o que fazer?) seja inutilizada graças a representações e normas prévias que fixem definitivamente a ordem instituída. Sob esse prisma, torna-se possível dizer que na ideologia as idéias estão fora do tempo, embora a serviço da dominação presente. Com efeito, afirmar que nela as idéias estão fora do tempo é perceber a diferença entre o histórico ou instituinte e o institucional ou instituído. A ideologia teme tudo quanto possa ser instituinte ou fundador, e só pode incorporá-lo quando perdeu a força inaugural e tornou-se algo já instituído. Por essa via podemos perceber a diferença entre ideologia e saber, na medida em que, neste,as idéias são produto de um trabalho, enquanto naquela as idéias assumem a forma de conhecimentos,isto é, de idéias instituídas.


Tomemos a ajuda de um exemplo. Costuma-se imaginar que o Santo Ofício puniu Galileu porque a física galilaica punha em risco uma representação do mundo que servia de sustentáculo para a dominação teológico-política medieval. Assim sendo, torna-se compreensível a reabilitação do saber galilaico quando a burguesia toma o poder e encontra na nova física uma representação do espaço e do tempo que convém ao exercício de sua prática econômica e política. Dessa maneira, a demolição do poder teológico-político medieval faz da scienza nuova um conhecimento válido que se converte, pouco a pouco, em ideologia da nova classe dominante, laica e profana. Ora, se fizermos um pequeno retorno à história, veremos que os acontecimentos ocorreram de modo bastante diverso. Em primeiro lugar, e sobretudo, não houve laicização da política, mas apenas um deslocamento do lugar ocupado pela imagem de Deus como poder uno e transcendente: Deus baixou do céu à terra, abandonou conventos e púlpitos e foi alojar-se numa imagem nova, isto é, no Estado. Não quero com isto referir-me ao direito divino dos reis. Refiro-me à representação moderna do Estado como poder uno,separado, homogêneo e dotado de força para unificar, pelo menos de direito, uma sociedade cuja natureza própria é a divisão das classes. E esta figura do Estado que designo como a nova morada de Deus. Em segundo lugar, e conseqüentemente, não houve passagem de uma política teológica a uma política racional a teológica ou ateia mas apenas uma transferência das qualidades que eram atribuídas à Divina Providência à imagem moderna da racionalidade. A nova ratio é teológica na medida em que conserva, tanto em política quanto em ideologia, dois traços fundamentais do poder teológico: de um lado, a admissão da transcendência do poder face àquilo sobre o que este se exerce (Deus face ao mundo criado, o Estado face à sociedade, a objetividade das idéias face àquilo que é conhecido); por outro lado, a admissão de que somente um poder separado e externo tem força para unificar aquilo sobre o que se exerce (Deus unifica o mundo criado, o Estado unifica a sociedade, a objetividade unifica o mundo inteligível). Ora, se não é a laicização da racionalidade (pois não houve) que explica a aceitação da física galilaica pela burguesia, de onde nasce a incorporação dessa física como modelo da racionalidade moderna? O saber galilaico torna-se aceitável e passível de incorporação quando já foram acionados dispositivos econômicos, sociais e políticos que permitam acolher o saber novo não porque seja inovador, nem porque seja verdadeiro, mas porque perdeu a força instituinte, já se transformou de saber sobre a natureza em conhecimentos físicos, já foi neutralizado, e pode servir para justificar a suposta neutralidade racional de uma certa forma de dominação. Nessa passagem do que era instituinte à condição de discurso instituído ou de discurso do conhecimento, assistimos a o movimento pelo qual a ideologia incorpora e consome as novas idéias, desde que tenham perdido as amarras com o tempo originário de sua instituição e, assim, fiquem fora do tempo. E o que foi dito acerca de Galileu poderia ser dito, por exemplo, a respeito de Freud. Este dissera que, com a psicanálise, trouxera a peste à humanidade. Como explicar, então, que esse flagelo tenha podido converter-se, mundo afora, em terapia adaptativa e de ajustamento, se aquilo a que essa "terapia" pretende nos ajustar é exatamente o que torna possíveis a neurose, a psicose e a loucura? 


O caso Galileu (como o caso Freud) nos ensina algo que podemos designar com a expressão: discurso competente.O discurso competente é aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (estes termos agora se equivalem) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem. Assim, não é paradoxal nem contraditório em um mundo como o nosso, que cultua patologicamente a cientificidade, surgirem interdições ao discurso científico.


Podemos dizer que exatamente porque a ideologia contemporânea é cientificista, cabe-lhe o papel de reprimir o pensamento e o discurso científico. É nesse contexto de hiper-valorização do conhecimento dito científico e de simultânea repressão ao trabalho científico que podemos melhor apanhar o significado daquilo que aqui designamos como discurso competente.


O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência.


Cabe-nos, então, indagar o que significam essa repartição, circunscrição e demarcação do discurso quanto aos interlocutores, o tempo, o lugar, a forma e o conteúdo. Antes, porém, de tentarmos responder a estas questões, cumpre fazer uma observação. Com freqüência, a crítica do discurso competente costuma cair em uma confusão que é, no final das contas, um logro: a confusão decorrente da identificação entre discurso competente e discurso elitista, em oposição ao discurso democrático,identificado com o discurso de massa. Todos sabem o quanto a Escola de Frankfurt foi tachada de elitista por ter sistematicamente recusado a chamada "cultura de massa". Aqueles que criticam os frankfurtianos, o fazem por ignorarem um dos pontos fundamentais da Escola no que concerne à análise do conceito de "massa". Para os pensadores da Teoria Crítica, a cultura dita de "massa" é a negação de uma cultura democrática, pois em uma democracia não há massa; nela, o aglutinado amorfo de seres humanos sem rosto e sem vontade é algo que tende a desaparecer para dar lugar a sujeitos sociais e políticos válidos. Assim, ao tentarmos aqui a crítica do discurso competente, procuraremos não cair no logro da falsa oposição elite-massa, elite-popular. Pelo contrário, não só é importante evitar que a crítica da competência desemboque em populismo, como ainda é fundamental mostrar que aquelas duas oposições não têm sentido dentro do discurso competente.


Para alcançarmos a região onde melhor se determina e melhor se efetua o discurso competente precisamos referi-lo a um fenômeno histórico preciso: a burocratização das sociedades contemporâneas e a idéia de Organização que se encontra na base desse fenômeno.

A burocratização é um "processo que se impõe ao trabalho em qualquer nível em que se o considere,seja o trabalho de direção, seja o dos executantes e que, ao se impor, impõe um quadro social homogêneo tal que a estabilidade geral do emprego, a hierarquia dos ordenados e das funções, as regras de promoção, a divisão das responsabilidades, a estrutura da autoridade, tenham como efeito criar uma única escala de status sócio-econômico, tão diversificada quanto possível".

O fenômeno da burocratização, que Hegel e Marx haviam circunscrito à esfera do Estado, devora toda a sociedade civil, distribuída em burocracias empresariais (na indústria, finança e comércio), escolares,hospitalares, de saúde pública, sindicais, culturais, partidárias, etc. O processo de burocratização de todas as esferas da vida social, econômica e política, de todas as manifestações culturais (da hierarquia da universidade à hierarquia das igrejas, "populares" ou não) realiza-se sob a égide de uma idéia mestra: a idéia de Organização, entendida como existência em si e para si de uma racionalidade imanente ao social e que se manifesta sempre da mesma maneira, sob formas variadas, desde a esfera da produção material até à esfera da produção cultural. À medida que a complexidade da vida social cresce no modo de produção capitalista e nas formações históricas ditas "socialistas", o Estado se expande em todos os setores, encarregando-se de uma parte considerável da vida humana, de tal modo que, por sua mediação, o tecido da sociedade civil torna-se cada vez mais cerrado e encerrado sobre si mesmo. A ideologia dispõe, então, de um recurso para ocultar essa presença total ou quase total do Estado na sociedade civil: o discurso da Organização. 

Na compreensão da ideologia do discurso competente, o ponto de maior interesse para nós encontra-seno duplo movimento pelo qual o crescimento do poder do Estado é negado e afirmado pelo discurso.A dificuldade para percebermos de que se trata de um só e mesmo movimento com duas faces, ou de um duplo movimento simultâneo de afirmação e negação, decorre do fato de que há, aparentemente,duas modalidades diferentes do discurso da competência, quando, na verdade, trata-se de um só e mesmo discurso. Em uma palavra: tendemos a distinguir o discurso do poder e o discurso do conhecimento, ou seja, o discurso do burocrata e o discurso do não-burocrata.

Vejamos, de início, a aparência de que há dois discursos competentes diversos para, a seguir, percebermos que se trata de um discurso único dotado de duas caras.

Burocratização e Organização pressupõem as seguintes determinações: 

a) a crença na realidade em si e para si da sociedade, de tal modo que a racionalidade dos meios de ação inutiliza automaticamente qualquer questão acerca da racionalidade dos fins da ação;

b) existência de um sistema de autoridade fundado na hierarquia de tal modo que subir um degrau da escala corresponde à conquista de um novo status, uma nova responsabilidade e um novo poder que não dependem daquele que ocupa o posto,mas que pertence ao próprio degrau hierárquico, ou seja, a reificação da responsabilidade e do poder alcança o grau máximo na medida em que é o cargo, e não seu ocupante, que possui qualidades determinadas;

c) como conseqüência, surgimento de um processo de identificação dos membros de uma burocracia qualquer com a função que exercem e o cargo que ocupam, identificação que se exprime na existência de um cerimonial prefixado que garante o reconhecimento recíproco dos membros na qualidade de superiores e subalternos, bem como o reconhecimento da competência específica de cada um segundo o posto que ocupa; 

d) a direção, que não transcende a burocracia ou a organização, mas também faz parte dela sob a forma de administração, isto é, a dominação tende a permanecer oculta ou dissimulada graças à crença em uma ratio administrativa ou administradora, tal que dirigentes e dirigidos pareçam ser comandados apenas pelos imperativos racionais do movimento interno à Organização. 

Em uma palavra: tem-se a aparência de que ninguém exerce poder porque este emana da racionalidade imanente do mundo organizado ou, se preferirmos, da competência dos cargo

Nesse contexto, podemos aprender a primeira modalidade do discurso competente que se distribui em três registros: há o discurso competente do administrador-burocrata, o discurso competente do administrado-burocrata e o discurso competente e genérico de homens reduzidos à condição de objetos sócio-econômicos e sócio-políticos, na medida em que aquilo que são, aquilo que dizem ou fazem, não depende de sua iniciativa como sujeitos, mas do conhecimento que a Organização julga possuir a respeito deles. Essa primeira modalidade da competência é aquela submetida à norma restritiva do"não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância".

Para compreendermos a outra modalidade ou a outra face do discurso da competência, precisamos levar em conta a transformação sofrida pela própria ideologia burguesa com o processo da burocratização.

Em sua forma clássica, o discurso burguês é legislador, ético e pedagógico. Tratava-se de um discurso proferido do alto e que, graças à transcendência conferida às idéias, nomeava o real, possuía critérios para distinguir o necessário e o contingente, a natureza e a cultura, a civilização e a barbárie, o normal e o patológico, o lícito e o proibido, o bem e o mal, o verdadeiro e o falso: punha ordem no mundo e ensinava. Fazia das instituições como Pátria, Família, Empresa, Escola, Estado (sempre escritos com maiúsculas), valores e remos fundados de fato e de direito. Por essa via, o discurso nomeava os detentores legítimos da autoridade: o pai, o professor, o patrão, o governante, e, conseqüentemente,deixava explícita a figura dos subordinados e a legitimidade da subordinação. Emitia conhecimentos sobre a história em tennos de progresso e continuidade, oferecendo, com isto, um conjunto de referenciais seguros fixados no passado e cuja obra era continuada pelo presente e acabada pelo futuro.Era o discurso da tradição e dos moços, isto é, o discurso que se endereçava a ouvintes diferenciados por geração e unificados pela unidade da tarefa coletiva herdada.

Com o fenômeno da burocratização e da organização, a ideologia deixou de ser discurso legislador,ético e pedagógico fundado na transcendência das idéias e dos valores, para converter-se em discurso anônimo e impessoal, fundado na pura racionalidade de fatos racionais. Não deixou de ser legislador,ético e pedagógico, mas deixou de fundar-se em essências e valores, como deixou de ser proferido do alto para fundar-se no racional inscrito no mundo e proferir-se ocultando o lugar de onde é pronunciado. Ganhou nova cara: tornou-se discurso neutro da cientificidade ou do conhecimento.

Sob o signo da Organização aparece no mundo da produção um conhecimento acerca da racionalidade tal que esta já não é considerada como fruto ou aplicação da ciência ao mundo do trabalho, mas como ciência em si, ciência encarnada nas coisas. A ideia de Organização serve para cimentar a crença na existência de estruturas (infra ou supra, pouco importa) que existem em si e funcionam em si sob a direção de uma racionalidade que lhes é própria e independente da vontade e da intervenção humanas.O real, a ação e o conhecimento ficam consubstancializados, identificados. No interior dessa"substância", isto é, da Organização, os homens já encontram pré-traçadas as formas de ação e de cooperação "racionais", ou seja, aquelas que lhes será permitido ter. E cada sujeito imagina conhecer-se a si mesmo pela mediação do conhecimento que a Organização julga possuir a respeito dele. A ideologia, trazendo um novo modo de representar a racionalidade e o objeto racional, realiza-se agora pelo descomunal prestígio conferido ao conhecimento, confundido com a ciência ou com a cientificidade.

O que é o discurso competente enquanto discurso do conhecimento? Sabemos que é o discurso do especialista, proferido de um ponto determinado da hierarquia organizacional. Sabemos também que haverá tantos discursos competentes quantos lugares hierárquicos autorizados a falar e a transmitir ordens aos degraus inferiores e aos demais pontos da hierarquia que lhe forem paritários. Sabemos também que é um discurso que não se inspira em idéias e valores, mas na suposta realidade dos fatos ena suposta eficácia dos meios de ação. Enfim, também sabemos que se trata de um discurso instituído ou da ciência institucionalizada e não de um saber instituinte e inaugural e que, como conhecimento instituído, tem o papel de dissimular sob a capa da cientificidade a existência real da dominação.

Todavia, essas determinações da linguagem competente não nos devem ocultar o fundamental, isto é,o ponto a partir do qual tais determinações se constituem. A condição para o prestígio e para a eficácia do discurso da competência como discurso do conhecimento depende da afirmação tácita e da aceitação tácita da incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos. Nesse ponto, as duas modalidades do discurso da competência convergem numa só. Para que esse discurso possa ser proferido e mantido é imprescindível que não haja sujeitos, mas apenas homens reduzidos à condição de objetos sociais. Ora, exatamente no instante em que tal condição é preenchida (o discurso administrativo com racionalidade do real) é que a outra modalidade do discurso competente entra em cena para ocultar a verdade de sua primeira face. Ou seja, o discurso competente como discurso do conhecimento entra em cena para tentar devolver aos objetos sócio-econômicos e sócio-políticos a qualidade de sujeitos que lhes foi roubada. Essa tentativa se realiza através da competência privatizada. Invalidados como seres sociais e políticos, os homens seriam revalidados por intermédio de uma competência que lhes diz respeito enquanto sujeitos individuais ou pessoas privadas. Ora, essa revalidação é um logro na medida em que é apenas a transferência, para o plano individual e privado,do discurso competente do conhecimento cujas regras já estão dadas pelo mundo da burocracia e da organização. Ou seja, a competência privada está submetida à mesma reificação que preside a competência do discurso do conhecimento. Basta que prestemos uma certa atenção ao modo pelo qual opera a revalidação dos indivíduos pelo conhecimento para que percebamos sua fraude.

Sabemos que uma das maneiras mais eficazes de criar nos objetos sócio-econômicos e sócio-políticos a crença de que são sujeitos consiste em elaborar uma série de discursos segundos ou derivados, por cujo intermédio é outorgada competência aos interlocutores que puderem assimilá-los. Eis por que a partilha entre elite e massa é, senão ilusória, pelo menos um falso problema. Que discursos segundo sou derivados são estes? São aqueles que ensinarão a cada um como relacionar-se com o mundo e com os demais homens. Como escreve Lefort, o homem passa a relacionar-se com seu trabalho pela mediação do discurso da tecnologia, a relacionar-se com o desejo pela mediação do discurso da sexologia, a relacionar-se com a alimentação pela mediação do discurso dietético, a relacionar-se coma criança por meio do discurso pedagógico e pediátrico, com o lactente, por meio do discurso da puericultura, com a natureza, pela mediação do discurso ecológico, com os demais homens por meio do discurso da psicologia e da sociologia. Em uma palavra: o homem passa a relacionar-se com a vida,com seu corpo, com a natureza e com os demais seres humanos através de mil pequenos modelos científicos nos quais a dimensão propriamente humana da experiência desapareceu. Em seu lugar surgem milhares de artifícios mediadores e promotores de conhecimento que constrangem cada um et odos a se submeterem à linguagem do especialista que detém os segredos da realidade vivida e que,indulgentemente, permite ao não-especialista a ilusão de participar do saber. Esse discurso competente não exige uma submissão qualquer, mas algo profundo e sinistro: exige a interiorização de suas regras, pois aquele que não as interiorizar corre o risco de ver-se a si mesmo como incompetente, anormal, a-social, como detrito e lixo. Estamos de volta ao Discurso do Método, porém não mais como projeto de dominação da natureza (pois, de há muito, a sociedade burguesa já se encarregou dessa tarefa) e sim como exigência de interiorizar regras que nos assegurem que somos competentes para viver. A invasão dos mercados letrados por uma avalanche de discursos de popularização de conhecimento não é signo de uma cultura enlouquecida que perdeu os bons rumos do bom saber: é apenas uma das manifestações de um procedimento ideológico pelo qual a ilusão coletiva de conhecer apenas confirma o poderio daqueles a quem a burocracia e a organização determinaram previamente como autorizados a saber.

A ciência da competência tornou-se bem-vinda, pois o saber é perigoso apenas quando é instituinte, negador e histórico. O conhecimento, isto é, a competência instituída e institucional não é um risco, pois é arma para um fantástico projeto de dominação e de intimidação social e política. Como podemos notar, não basta uma crítica humanista ou humanitária ao delírio tecnocrata, pois este é apenas um efeito de superfície de um processo obscuro no qual conhecer e poder encontraram sua forma particular de articulação na sociedade contemporânea. Talvez, por isso mesmo, hoje, a fúria inquisitorial se abata, em certos países, contra esse saber enigmático que, na falta de melhor,chamaríamos de ciências do homem e que, quando não são meras institucionalizações de conhecimentos, instauram o pensamento e se exprimem em discursos que, não por acaso, são considerados incompetentes. Cumpre lembrar, ainda, que, em matéria de incompetência, nos tempos que correm, a filosofia tem obtido sistemática e prazerosamente o primeiro lugar em todas as paradas de sucesso competentes.

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