Dia 20 de Novembro vamos conhecer e celebrar outro herói? Negro Cosme, Tutor e Imperador da Liberdade Bentevi.

Dia 20 de Novembro vamos conhecer e celebrar outro herói?
Negro Cosme, Tutor e Imperador da Liberdade Bentevi.





Renato Artur Nascimento - professor de História


O Povo negro é um povo heroico. Resistiu, em seu silencio, por séculos às violências cotidianas a que eram submetidos.

Povo trabalhador sustentou a economia de uma colônia inteira, enriquecendo exploradores ambiciosos.

Povo lutador buscou a liberdade formando quilombos de norte ao sul do país. Forma de juntar dor e esperança, de unidos tentarem alcançar uma vida digna. 

Zumbi dos Palmares é um grande exemplo, mas não é o único. Muitos quilombos foram erguidos, muitos foram destruídos e muitos ainda hoje preservam a sua identidade, o seu vigor, o seu sonho.

Mas o quilombo, como espaço de convivência, não era uma ameaça ao Estado escravocrata. Atiçava sim, o sonho e desejo de liberdade de outros negros, ainda escravos. Alguns quilombos conviviam pacificamente com outras comunidades, fazendo escambos e comércio. Outros foram duramente reprimidos para que o sonho não contaminasse outras “peças”. (Assim eram chamados os escravos, comprados e vendidos como mercadoria.)

Vamos agora conhecer outro herói negro. Este era uma ameaça à estrutura econômica que sustentava o Império do Brasil. Tão grande era esta ameaça que uma figura de destaque do Exército foi enviada ao Maranhão para combater a revolta que ficou conhecida como Balaiada. Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias.

Porém se faz necessário antes tecer alguns comentários, fundamentais, para a compreensão dos eventos que iremos analisar. 

Na reconstituição de fatos históricos utilizamos várias fontes de pesquisa. Documentos oficiais, cartas, textos da época publicados, testemunhos orais ou outras fontes passíveis de trazer luz à pesquisa. Mas como fazer uma pesquisa documental quando parte dos envolvidos não tinha acesso à escrita? Tornando mais difícil, como observa Chauí, “a tarefa de reconstrução do universo social das camadas populares, cuja memória é muito pouco documentada e às vezes apenas esboçada em seus movimentos no nível da documentação”. (Apud Claudete Maria M. DIAS, 1995)
Entretanto: “se a falta de fonte torna frequentemente impossível a reconstituição de um movimento de massas dia-a-dia, e se o caráter iletrado de seus membros nos condena a conhecê-los quase só por intermédio de terceiros, há um fato essencial que dispomos: seus atos.” (Cardoso & Brignoli, 1979)
“Inexistindo fontes primárias produzidas pelas camadas populares, como escrever a história delas? Significa um desafio estudar as fontes oficiais no sentido de reconstruir a história da população que se organizou contra as autoridades que reprimiram os seus movimentos de rebeldia.” (Claudete Maria M. DIAS, 1995)
Considerando que os fatos não chegam puros até nós e que os documentos não são os donos da verdade, que transmitem a versão das classes dominantes, é preciso interpretar o que o texto nos dá a entender “sem ter a intenção de dizê-lo.” Como bem disse Marc Bloch.
Durante o século XIX, historiadores procuraram explicar o nascimento do Estado nacional brasileiro, atribuindo às instituições do novo país independente um caráter constitucional, renovador e civilizado. Nessa medida, os movimentos contestatórios, entre eles a Balaiada, foram julgados como anomalias, manifestações da barbárie contra a civilização, representada pela ordem monárquica. (Maria de Lourdes M. JANOTTI, 2006)
Então, vamos aos fatos. A Balaiada enquanto revolta popular, tem sua origem na disputa do poder provincial entre os conservadores (cabanos) e liberais (bentevis). Insuflada por intelectuais liberais através do jornal O Bentevi (daí o nome), a revolta tem seu start a partir da ação de Raimundo Gomes para libertar seu irmão de uma delegacia no interior da província. Os eventos seguintes serão decorrência deste fato gerador. 
Os escravos, sob a liderança de Negro Cosme, iniciam a sua luta pelo fim da escravidão e pela liberdade. Cada um dos grupos revoltosos tinha seus objetivos. Para os balaios o fim da escravidão não era parte de seus interesses, mas a revolta dos escravos garantia folego e servia de apoio à luta dos bentevis. A luta se estende do Maranhão ao Piauí, se dando em escaramuças de guerrilha.


 
Como já vimos, é necessária a reinterpretação dos textos disponíveis. Se usarmos um documento do Exército como fonte primária veremos que:
# “...líderes inescrupulosos...” 
# “...sem lei e sem rei, e sem outros objetivos agora que não o saque e vantagens pessoais, tornou-se com seu bando uma ameaça à segurança, à ordem e à tranquilidade públicas no interior maranhense”.
# “Os líderes balaios não possuíam unidade de comando, esta impossível, face às vaidades e ambições de cada líder”.

# Até na proclamação de Luís Alves de Lima e Silva, em 7/2/1840, esta visão é apresentada:
"(...) Maranhenses, venho partilhar de vossas fadigas e concorrer quanto em mim couber para a inteira e completa pacificação desta bela parte do Império. Um punhado de facciosos, ávidos de pilhagem, conseguiu encher de consternação, de luto e de sangue, vossas cidades e vilas! O terror que necessariamente deviam infundir-vos esses bandidos concorreu para que eles tivessem engrossadas suas hordas.”

Já para Caio Prado Jr., os balaios “não souberam ligar o seu movimento ao dos escravos, que teriam se aproveitado da agitação reinante, para levantar-se em vários pontos da província. Os levantes desconexos e mal orientados, em nada contribuíram para fortalecer a insurreição”.

# O autor minimiza a participação dos escravos, afirmando que tinham a “direção grosseira” de um escravo chamado Cosme. Mas não deixa de observar que “os chefes legais, tudo fizeram para impedir a união de sertanejos e escravos” (Prado Jr., 1979: 72).

# “As autoridades temiam a união dos escravos rebeldes com os movimentos da população livre, e tomavam medidas de controle e manipulação para impedir, como por exemplo... a anistia que não alcançava os escravos, entre outras”. (C.M.M. DIAS)

Agora vamos “ler” o que não está escrito! 

Primeiro, eram duas revoltas. A dos balaios, a quem faltava uma orientação estratégica, fosse política ou militar, visto que o objetivo dos liberais era abalar o poder dos conservadores e que ao aumentar a violência no interior foram para a capital, São Luís, para ficar sob a proteção do presidente da província recém-nomeado, Luís Alves de Lima e Silva.

Segundo, a revolta escrava, que tinha um objetivo estratégico claro: o fim da escravidão, e que por isto, se transformava no inimigo a ser batido, já que punha o sistema econômico na berlinda.

Caio Prado Jr fala em ações desconexas e mal orientadas e o documento do exército diz que não havia unidade de comando entre os balaios. O que podemos interpretar que a falta de uma orientação estratégica e a ausência de uma coordenação política, por parte dos liberais, que abandonaram os revoltosos, transformaram a revolta em bandos isolados.

Quanto à revolta dos escravos, a ameaça real ao sistema econômico impunha ao exército uma repressão a ferro e fogo. Sem a possibilidade de anistia ou de devolução dos escravos aos seus antigos donos, pois poderia servir de elemento para novas sublevações. 

E Prado Jr., ao citar a luta dos escravos, fala em “direção grosseira” do movimento, minimizando a participação do Negro Cosme. Mas reforça a ideia de que era um dos objetivos das tropas legalistas: impedir a união de sertanejos e escravos. Sem perceber o autor deixa antever em seu posicionamento o velho preconceito de nossa sociedade.

Os balaios, que no inicio da sua revolta, não queriam o apoio dos escravos revoltados, passaram a necessitar de sua ajuda para poderem sobreviver. 

Mas e o Negro Cosme?

Cosme adotou o título de Dom Cosme Bento das Chagas, Tutor e Imperador da Liberdade Bem-Te-Vi e fundou na fazenda Tocanguira o maior quilombo da história do Maranhão. Tornando-a, a partir de então, seu quartel-general. Dentro desse quilombo militar, montou uma escola, a fim de que todos pudessem aprender a ler e escrever, o que naquela época foi um feito notável, tendo em vista que somente os mais abastados usufruíam desse direito.

Negro Cosme, hoje é reconhecido como um dos mais importantes personagens da luta contra a escravidão no Brasil. Mas nem sempre foi assim. Mesmo tento um papel de inegável valor histórico, o líder negro não escapou de ser tratado como um personagem folclórico em boa parte da literatura que trata sobre o assunto. A pesquisadora Mundinha Araújo observa que o líder negro passou a ser ridicularizado como um sujeito maluco, alienado ou aloprado, que acabou virando lenda.

Reinterpretando: na situação de desespero dos balaios o apoio dos negros comandados por Cosme era fundamental. Ao assumir o título de tutor e imperador da liberdade bentevi ele descrevia algo real. Passava a ser o tutor, ou melhor, o defensor dos balaios. E a estrutura política do país, uma monarquia onde a figura do imperador era central, passa a ser a sua referencia de poder. As críticas que tentavam ler nesta postura uma situação de ridículo caem por terra. 

Esta pesquisa dá perfeitamente para se reavaliar fatos históricos e compreender Cosme como um personagem que tem que ser estudado como alguém que teve um destaque considerável, não como criminoso, como bandido, mas como alguém que teve a capacidade de liderar milhares de negros, incluindo escravos e pretos libertos, africanos e crioulos – os negros já nascidos no Brasil, afirma Mundinha Araújo.

Renato Artur Nascimento - professor de História

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