Mortes de transexuais e travestis crescem no país








Autor(es): JULIA CHAIB
Correio Braziliense - 02/12/2012


Só este ano, quase 300 homossexuais foram assassinados de forma violenta no Brasil, que já é o recordista mundial em casos desse tipo. Para organizações de defesa dos direitos humanos, maioria dos homicídios está relacionada ao preconceito

As imagens da época de escola, quando sofria violências físicas e psicológicas dos colegas, restam na lembrança de Renata Gonçalves, 28 anos, até hoje. Nascida em Amarantes, pequeno município do Maranhão, a travesti sentiu desde cedo a angústia de não pertencer por completo ao gênero que a definia como homem. Com 16 anos, passou a tomar hormônios femininos e iniciou um processo de transformação radical na aparência. "Me lembro até hoje de ser presa no banheiro da escola pelos meninos, que me xingavam. Às vezes, eles me furavam com lápis e outros objetos", relata. A sensação de não pertencimento era tanta que ela largou os estudos na 7ª série do ensino fundamental. Como se não bastasse desistir da escola, foi expulsa de casa pelos parentes, que não a aceitavam como ela queria ser.

Renata foi para Anápolis (GO) aos 17 anos ganhar a vida como prostituta, por absoluta falta de opções. Há mais de uma década vive no Distrito Federal, onde trabalha como profissional do sexo. Sem usar nenhum tipo de droga e tentando viver longe da criminalidade, Renata não se livrou, na capital do país, da sina de discriminação. "Quando eu estou nas ruas fazendo programa, fujo sempre quando passa um carro com "boys". Já jogaram cacos de vidros em mim e, uma vez, eu apanhei muito de um homem que estava com um taco de beisebol." Em 2008, viu o quão longe a violência pode ir, quando uma colega travesti foi assassinada. "Era carnaval, tinha muita gente de fora na cidade. Pegaram ela em uma esquina e a espancaram", conta.

Ranking trágico

Cenas como as presenciadas por Renata ocorrem frequentemente no Brasil. Até o último dia 30, pelo menos 290 homossexuais foram assassinados. Mais do que no ano passado, quando o número não passou de 260. Entre os mortos de 2012, 130 eram travestis ou transexuais, 28 a mais que em 2011. No DF, uma travesti foi morta no último dia 10, com três tiros. A média nacional é de duas travestis mortas a cada cinco dias. Os dados são do Grupo Gay da Bahia (GGB) e da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Redtrans). Os dois movimentos trabalham apenas com ocorrências de mortes violentas que, segundo eles, estão direta ou indiretamente relacionadas à homofobia.

Os números, de acordo com o GGB, confirmam o Brasil na primeira posição do ranking mundial de assassinatos homofóbicos, concentrando 44% do total de execuções de todo o mundo. Nos Estados Unidos, com 100 milhões a mais de habitantes, foram registrados nove assassinatos de travestis em 2011, contra 98 no Brasil no mesmo ano.

Também em 2011, a transexual Madalena foi eleita vereadora em Piracicaba, interior de São Paulo. Desde que conquistou uma cadeira na Câmara da cidade, em 7 de outubro, com 3 mil votos, ela recebe ameaças de morte.

Para a psicóloga especialista em questões de gênero Tatiana Lionço, embora o país registre avanços, como a eleição da transexual Madalena, a quantidade de travestis e transexuais mortas este ano reflete o aumento da violência contra lésbicas, gays, bisexuais , travestis e transexuais, o chamado grupo LGBT. Na opinião da especialista, o aumento da visibilidade e do ativismo da comunidade LGBT provocou uma reação agressiva. "É como se essas evoluções realizassem ambiguamente um processo de revolta. A crescente visibilidade gerou um retrocesso, uma reação extremamente conservadora, sobretudo em fundamentalistas religiosos e grupos de extrema-direita", opina.

O sociológo Gustavo Venturi associa o fato de a maioria dos transexuais e travestis estar à margem da sociedade com os altos índices de violência. Na visão dele, muitas são prostitutas porque há uma alta evasão escolar. "Às vezes, (a prostituição) é uma opção, mas, muitas vezes, é quase uma falta de opção. Quantas escolas admitem professora travesti ou uma travesti/transexual servidora pública?", pergunta. Para ele, existem casos evidentes de pessoas que conseguiram superar as adversidades e se impor a partir de mérito próprio de convivência e respeito, como da transexual Bianca Souza, formada em publicidade. Hoje, é funcionária do Governo do Distrito Federal (GDF) e coordena a equipe de recursos humanos de um dos pontos de atendimento do Na Hora.

Bianca acredita, no entanto, que só atingiu de fato seus objetivos porque ainda não havia se assumido completamente como mulher enquanto estava na universidade. "Depois que me formei, passei a me assumir inteiramente como sou e mudei meu nome. Hoje, eu sei me impor e não sofro como as demais colegas. Mas milito na área, faço parte de um grupo brasiliense chamado Nave Trans e sei que sou minoria", explica.

Para Venturi, uma das maneiras de enfrentar o preconceito e dar visibilidade a essas pessoas é discutir o assunto abertamente nas salas de aula. "É muito difícil você sofrer humilhações e discriminações todos os dias da vida. A sexualidade deve ser discutida nas escolas a partir do segundo ano do ensino fundamental, período em que as pessoas estão entrando na pré-adolescência e passando a se conhecer cada vez mais", defende.

Sutis diferenças

Tatiana Lionço e Gustavo Venturi definem travestis e transexuais como duas categorias de gênero distintas incluídas em um mesmo grupo. Para eles, os transexuais são aqueles cujo corpo e a mente estão em desalinho completo: um homem que está em um corpo de mulher ou uma mulher que está no corpo de um homem. Eles dizem que os transexuais são os que frequentemente optam pela transformação completa de gênero, isto é, fazem a cirurgia para mudança do órgão sexual. Os travestis, para os especialistas, não necessariamente querem mudar de sexo: eles se sentem bem "com um pouco dos dois".


Autor(es): JULIA CHAIB
Correio Braziliense - 02/12/2012

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