POR QUE TRABALHAS TANTO, DOUTOR? - Yglesio Moyses






POR QUE TRABALHAS TANTO, DOUTOR? 

Não, amigo, eu não quero ficar rico com a Medicina. Eu sei que não conseguirei... Quando eu entrei na Faculdade, eu sabia que seria difícil, mas não tanto. Enquanto meus colegas tinham cursos de 3000, 4000 horas, eu nunca imaginei que para ser médico eu precisasse estudar 8200 horas na Faculdade...Foram tantas noites em claro, tantos aniversários perdidos. 

Eu quero servir ao próximo, eu já faço isso, mas infelizmente, o governo me paga 1300 reais de salário e o resto são gratificações que me dão entre 3000 e 5000 reais, dependendo de onde trabalhe. Amigo, eu me sinto tão inseguro. Minha aposentadoria está ameaçada... Eu não vejo meus professores em fim de carreira felizes, vejo a maioria jogada à mingua, dependendo da caridade dos próprios colegas. Muitos perderam o amor dos filhos e estragaram seus casamentos por tantas horas fora de casa, por tanta pressão em ambulatórios ruins, centros cirúrgicos sem material, sem sangue, sem antibiótico, salas de emergência sem segurança... A televisão nos anuncia como criminosos, os pacientes nos veem como heróis algumas vezes, mas na maioria delas tratam-nos como algozes ou como fonte de dinheiro em processos dos mais diversos. 

Estou cansado, amigo, cansado de ver o salário mínimo ter ganho real de cinco, seis pontos percentuais ao ano e meu salário estar há 3 anos sem qualquer tipo de correção. Sinto-me desprestigiado porque minha consulta médica no SUS não cobre meu gasto com um cabeleireiro. Na verdade, preciso consultar cinco pessoas a 7 reais para pagar meu corte de cabelo. No caso dos convênios, recebo 20, 30, 40 reais dependendo do local do Brasil onde esteja... E descontados os impostos, os retornos das consultas que não são pagos, as despesas de consultório, o cafezinho e a secretária, me restam não mais que 10 reais de lucro por cada pessoa que atendo. 

Quando entrei na faculdade, via meus professores com carros bonitos, boas roupas. Hoje em dia, não percebo nos olhos destes que hoje são meus colegas o brilho estampado nos relatos de décadas atrás. Percebo o sorriso melancólico, a fronte retesada, a falta de paciência e a preocupação constante em pagar as contas de seus filhos, de terem quatro, cinco empregos para que não falte a melhor educação possível à sua prole e que se possível não sigam seus passos, que não mais façam provas para medicina. Que sigam novos caminhos...Que tentem viver um pouco para si mesmos e não para o próximo, como seus pais viveram e como hoje vivo.

Amigo, tenho medo agora das pessoas que dizem que vão me proibir de trabalhar... Trabalhar foi a única coisa que por vezes me restou, é a maneira de eu garantir a vida dos meus, mas também de estar onde mais gosto: na linha de frente, salvando vidas. Tudo que eu queria , querido amigo, era o “ muito obrigado doutor” que não mais existe, o reconhecimento financeiro pelo que eu faço. Eu trabalho em tantos lugares porque assim como você, tenho planos e muitos sonhos, muitas dívidas e muitas responsabilidades. Se o padre e o pastor cobram pelo sacerdócio e cobram bem, se o Juiz que tem o sacerdócio e o dever de fazer valer a lei recebem tão dignamente, eu não os invejo, ao contrário, eu os glorifico, mas gostaria também que alguém lembrasse de mim, que não sou sacerdote máquina, não sou trabalhador escravo, sou um protetor da vida.

Lembre-se de mim, amigo, quando você chegar lá. Estarei torcendo para que você faça diferente. Não limite minhas horas, não diga o que eu posso fazer, o quanto eu aguento trabalhar. 

O que eu sei que você pode fazer é lutar para que eu tenha mais dignidade no emprego, para que eu não precise trabalhar tanto. Não interrompa a minha rotina, o que eu gosto de fazer, nem feche as portas para que eu possa abri-las para a minha família. No fim, é tudo que me resta e o que mais importa. Eu acredito em novos tempos...E acreditar é o que me faz caminhar...

Um abraço do seu sempre amigo,

Médico de todo dia.

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