Os modos de um decidir teratológico



- Amanda Madureira[i]

O papel aceita tudo. Nele, podemos solidificar ou desestruturar relações, julgá-las conforme nossas conveniências, valores ou ainda, contra-valores. Quem lê ou quem recebe o papel pode nem sempre estar preparado para o que está escrito. Alguns papeis tem força – e, porque não dizer – força de lei. Outros papeis abrandam o que não deveriam esconder ou evidenciam o inexistente.

Diante disso, uma questão se impõe: como julgar e, como colocar em papel algo trazido sob circunstâncias e vivências que repercutem sobre pessoas, seres humanos, que ao final de um curso de um processo, também dependem de um papel, assinado, subscrito, publicado sob a ordem de “Cumpra-se”; “Publique-se”; “Intime-se”? Papel tem poder para cumprir. Quem coloca no papel tem poder para fazer cumprir. 

A Justiça Maranhense pode eventualmente não fazer cumprir com o seu principal objetivo, qual seja, o zelo por uma prestação jurisdicional adequada. O que leva um cidadão a procurar o Poder Judiciário e toda a sua engrenagem institucional, compartimentada em varas especializadas, comarcas, instâncias faz crer que o que será colocado no papel, consubstanciado em sentença, liminar e tantas outras formas burocráticas que devem fazer valer o direito servem para apontar, discernir e, sobretudo, decidir sobre um caso concreto. Esse papel tão importante, por assim dizer, que pode receber as mais variadas denominações deveria sempre representar a chancela da razoabilidade, competência e legitimidade. 

Ocorre que nem sempre é o que acontece. Ademais, parece que as Instituições do Sistema de Justiça e seus papeis impressos, subscritos e publicados podem estar tão distantes de nossa realidade que ao invés de fazer ecoar a Justiça só conseguem traduzir angústia. E medo. Podemos ter muito medo do papel. Se precisamos do papel para fazer valer o nosso direito, o papel pode acabar nos tornando vítimas corriqueiras das vituperações inescrupulosas de um mal uso de poder no papel. 

O problema de colocar o que não se deveria no papel e ou de omitir o que deveria estar absolutamente explícito pode ser a força motriz que colabora para desestabilizar o lado que acredita, ainda, nas Instituições do Sistema de Justiça. Algumas áreas são tão sensíveis quanto vilipendiadas cotidianamente nas reverberações de um papel. Isto porque conflitos que envolvem família, mulher, criança e adolescente requerem expertise, afinco, razoabilidade e segurança. A esta altura, uma pergunta se faz necessária: Não deveriam ser todos os magistrados tecnicamente aptos a colocarem no papel aquilo que representa o real direito?

Sim, todos deveriam. Porém, nem todos o são. Tomemos como ponto de reflexão um caso recente versando sobre violência doméstica contra mãe e filha, em estudo. Os processos contam com farto arcabouço probatório, inquérito concluído na DEM, pareceres de membros do Ministério Público e decisões de magistrados das varas especializadas da mulher e violência doméstica e da primeira vara de infância, inclusive com oferecimento de denúncia pelo MP. O caso em análise pode estar trazendo à baila uma grave violação aos direitos humanos. 

Uma sucessão de papeis fundamentados traduz o que se espera, um julgamento prudente, cuidadoso e imparcial. Após o reconhecimento do risco implicado na situação por 4 (quatro) autoridades judiciais, demonstrando a necessidade de avaliação técnica e precisa das varas especializadas para que se delimite com segurança o contexto no qual estão inseridas duas mulheres em condição de vulnerabilidade de gênero, mãe e filha, um obstáculo iatrogênico se impõe: a violência institucional aos direitos humanos, fazendo reverberar a violência para além daquelas vividas em um ambiente doméstico , infelizmente, repercutindo na estrutura de um sistema de justiça que deveria proteger. 

Isso aconteceu recentemente porque determinado magistrado, respondendo pela segunda instância decidiu colocar no papel o que achou conveniente, à sua maneira, desconsiderando tudo o que foi sustentado até então, à revelia do próprio CPC. É como se um papel seguro porque exarado por um especialista, razoável diante de farta comprovação e legítimo porque amparado em lei perdesse a importância, fosse jogado para o alto. O jogo passa a não ser de quem comprova, mas de quem conlui arbitrariamente, de quem é parcial, de quem julga na circunscrição de seus deleites pessoais e que passam ao largo de um papel justo e correto. Omite-se a identidade do referido magistrado pelo constrangimento que causa colocar o seu nome neste papel.

Mas o que seria a teratologia? Em sua etimologia, a palavra de origem grega faz referência ao estudo de monstruosidades ou ainda a uma relação de fatos espantosos, estranhos. No aspecto jurídico do termo, a teratologia traduz uma decisão contrária à lógica, ao bom senso e à moralidade, inviabilizando as relações sociais. Uma decisão teratológica compromete a convivência, a vida em sociedade, o interesse público. Decisão teratológica compromete o valor que deve ter o papel. 

Como garantir segurança, vida tranquila, reais e justos interesses de um grupo vulnerável por condição de gênero, mãe e filha? Como impedir que monstruosidades de um magistrado não se cristalizem em papel que tudo aceita? Foi aí que um outro papel, que também tudo aceita e fundamenta, reconheceu a teratologia da decisão do primeiro magistrado e a rechaçou. Na urgência a que são submetidas medidas em caráter de plantão, o relator plantonista Des. José de Ribamar Froz Sobrinho demonstrou que a ausência de lógica, razoabilidade, prudência e em especial a ausência da aplicação do direito pode comprometer as relações, a paz social e a segurança de uma prestação jurisdicional de fato justa.

Desta vez, não se omite o nome do magistrado, ao contrário, enaltece-o na medida em que sua competência, imparcialidade e razoabilidade ainda podem fazer ressoar o valor de um papel justo. A reafirmação social na credibilidade do papel justo parece ser uma das portas de saída para que se deixe inclusive de apelar para justiçamentos amorais e se volte a acreditar que a Justiça pode prosperar, reacendendo a possibilidade de , pelo papel, chegar-se a desfechos civilizados de violações de direitos. 


[i] Doutoranda em Políticas Públicas pela UFMA, Mestre em Direito pela UFSC. Professora da Universidade CEUMA e CEST. Pesquisadora do Observatorium de Segurança Pública PPGDIR UFMA/CECGP e NEDC.

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