domingo, 21 de agosto de 2016

Uma nação de bêbados?

- Abdon Marinho -
A GRANDE polêmica dos últimos dias – capaz, até mesmo, de ofuscar o brilho do ouro olímpico – parece ter sido a declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal - STF, Gilmar Mendes por ocasião do julgamento que reconheceu serem as Câmaras Municipais, os órgãos competentes para o julgamento dos gestores municipais. O ministro disse que a chamada “Lei da Ficha Limpa” parecia ter sido escrita por bêbados, ressalvando não ser sua intenção ofender quem quer que fosse.

A declaração, mais que o conteúdo do voto (onde, de fato, deve ser elucidado o posicionamento do ministro), causou enorme estardalhaço merecendo pronto repúdio de associações ligadas aos Tribunais de Contas, da Ordem dos Advogados do Brasil, parte da mídia e outros que se sentiram atingidos pela decisão da Suprema Corte. 

Minha posição, deixando claro desde já, é que o Supremo interpretou de forma correta a Constituição Federal. Tenho visto muitos cidadãos esclarecidos falarem como se o STF estivesse “inventando” o direito. Nada disso, ele apenas, como guardião da Carta, diz qualquer a interpretação mais correta da mesma. 

Comungo com o entendimento que a interpretação mais correta para a questão que vem se arrastando desde muito tempo, principalmente, depois das últimas reformas legais, feitas no calor do clamor popular.

Diferente da pregação feitas pelos que se sentiram pessoalmente atingidos pela decisão e que alardeiam aos quatro cantos da terra que a população foi prejudicada, que os corruptos tomarão de assalto o poder, que teremos a impunidade como consequência da decisão, penso em sentido inverso, acho que podemos melhorar nossa representação política. E não vou nem ressaltar que a “incompreendida” decisão tem mais sustentação do que aparenta, à primeira vista, conforme explicarei a seguir.

A Constituição Federal, diferente do que muitos pensam, não começa no artigo primeiro. Ela começa no preâmbulo, e lá está escrito: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” 

Vejam, o legislador constituinte disse que estavam elaborando o texto constitucional em nome do povo brasileiro. Não satisfeitos assentaram, já no parágrafo único do seu primeiro artigo: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Pois bem. O que está cristalino neste inicio de conversa é a soberania popular. O que está dito é que o poder originário pertence ao povo. 

Ora, o que os arautos da moralidade pregam é: o povo – que é nos termos da Constituição os “donos do poder originário” –, não possui a capacidade de bem escolher seus representantes, são incapazes de escolher, por conta disso, precisam que os tribunais de contas ou cortes de justiça, retirem aqueles candidatos corruptos, malfeitores da disputa para que os mesmos não sejam escolhidos. 

Por conta desta profunda incapacidade de escolher, este povo brasileiro, precisa ser tutelado ao extremo. 

O engraçado é que dizem falarem isso em nome do povo, da sociedade civil. Mas, como, falam em nome do povo que acham ser incapaz? Fico encabulado com isso. Os mesmos que enchem a boca para falar no "povo", são os primeiros a negarem a este mesmo povo o direito de serem os responsáveis por suas escolhas, senhores do seu destino. 

No caso especifico, do julgamento de que tratou o STF, a Constituição não deixa dúvidas sobre a competência, basta ver o artigo 33 e seus parágrafos: 

“Art. 33. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

§ 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

§ 2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

§ 3º As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.”

Ora, o legislador constituinte, nestes dispositivos, deixou claro o papel de cada um na equação. 

O que estavam fazendo, por vias tortas, era colocar o protagonismo, a palavra final no órgão de controle, contrariando o que a Constituição deixa claro como sendo responsabilidade das Câmaras Municipais. 

Nos meus vagares, sempre me perguntei, a persistir esse entendimento, o que farão com o artigo 33?

Aqui, não se está a dizer ou negar a importância dos órgãos técnicos de controle. A questão é que não se pode passar “por cima” do que estabelece a Constituição. Isso vai além do pensamento individual de cada um. Isso tem a ver com o poder originário. Fazendo uma metáfora – pela qual nos desculpamos desde antes –, era como se fosse possível o rabo balançar o cachorro e não o contrário.

O que a Constituição está dizendo é que a fiscalização, o controle dos atos dos gestores públicos, será feitos pelos representantes do povo, por aqueles que são, em última instância, os donos do dinheiro, os donos do patrimônio administrado. 

Se os vereadores, deputados ou senadores erram ao formarem seus juízos, os eleitores, repito, os donos do poder, têm a chance de demiti-los através de eleições livres e colocar outros nos seus lugares. 

Podem fazer o mesmo com os órgãos de controle? Grosso modo, até podem, mas não com a mesma facilidade que fazem através de eleições livres e regulares. Noutras palavras, por qual razão devemos confiar mais nos tribunais de contas – que pouco ou nada podemos inferir – que no julgamento da câmara que podemos trocar com data certa?

O que a legislador fez foi garantir ao cidadão/eleitor aquilo que colocara no preâmbulo da Carta e seu artigo primeiro: que é ele o protagonista da nação. Não poderia ser diferente.

Mas, nem por isso, a Constituição deixa de reconhecer a importância e relevância dos órgãos de controle ao deixar explicito que os seus pareceres só deixam de prevalecer se esta for a vontade de dois terços da representação legislativa. Isso não é pouca coisa. 

Aí que digo acreditar que a representação parlamentar possa melhorar: os eleitores, conscientes da sua responsabilidade, escolherão melhor seus representantes ou não. 

A democracia, costumo dizer, é um negócio arriscado, pois é feita basicamente com o povo. 

Sempre desconfio daqueles que dizem falarem em nome do povo mas que não confiam no seu juízo. Toda hora querem dizer o que fazer, como fazer, etc.
Acredito ser o papel da chamada sociedade civil, das entidades de defesa da moralidade, da transparência, ao invés de quererem falar em nome do povo, calando-lhe a voz, deveriam conscientizar este mesmo povo da sua importância e responsabilidade. 

Esta não é uma missão impossível, temos, hoje, mecanismos fabulosos de difusão de ideias e informações, não há nada que se faça que não possa ser esquadrinhado, difundido; temos os mecanismos de transparência; do acesso a informação; um Poder Judiciário e um Ministério Público mais presentes na vida dos cidadãos e os próprios órgãos de controle poderiam tornar mais céleres e transparentes seus pareceres, levando-os ao conhecimento dos cidadãos ainda no curso dos mandatos. Reclamam das câmaras municipais mas pouco se dão conta ou se preocupam com o tempo que leva as cortes de contas para examinar as contas dos gestores. 

Cabe a todos, trabalharmos, incansavelmente para tornarmos os cidadãos/eleitores mais conscientes e responsáveis por suas escolhas e não substituí-los nas mesmas. 

Na verdade, bêbados, não são os legisladores, são os eleitores, e o porre dura quatro anos. Mas, uma nação de bêbados, talvez seja o preço cobrado por vivermos numa democracia. 

Abdon Marinho é advogado.

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